domingo, 20 de maio de 2012

AS CASAS DO TERROR

Ilustração: Guayasamin.

É uma fria manhã de novembro e estou diante da TerrorHáza, a Casa do Terror, em Budapeste. É um museu -no prédio funcionou a sede das polícias políticas da Hungria, tanto no regime nazista quanto no comunista. Rua Andrássy, 60. Ao olhar a fachada, um nome surge em meu pensamento: Inês.

Inês, que não é morta, mas que foi ao inferno e voltou para contar a história. Inês Etienne Romeu, ex-guerrilheira da Var-Palmares, ex-companheira de luta armada de Dilma Rousseff. Inês, que ficou presa durante quase nove anos e passou três meses na casa de tortura, em Petrópolis, levada pelo delegado Sérgio Fleury. A única, entre os prisioneiros, que saiu viva de lá.

É nela que penso. No pátio interno, o chão é um espelho d'água e, sobre ele, há um tanque de guerra. A única parede cega é forrada por rostos, em alto contraste. Homens e mulheres. As vítimas do terror.

Conheci Inês Etienne Romeu em 1977, presa no Instituto Penal Talavera Bruce, em Bangu, condenada à prisão perpétua. Na época, a situação já tinha melhorado para os presos políticos, mas, sempre que eu a via, nas visitas mensais ou quinzenais que lhe fazíamos (eu era casada com o irmão dela, Paulo), não conseguia deixar de pensar no que Inês tinha passado.

Inês foi presa em 1971, em São Paulo, e por três meses esteve desaparecida. Foi dada como morta, e a família já procurava seu corpo quando ela voltou, destroçada, pesando pouco mais de 30 quilos.
Seu reaparecimento talvez tenha sido uma tentativa, por parte dos paramilitares, de forjar uma fuga e assassiná-la, mas algo deu errado no plano: Inês foi presa, agora oficialmente, e isso a salvou.
Só assim pôde revelar onde estivera naqueles três meses, entre 5 de maio e 11 de agosto de 1971. A casa de tortura de Petrópolis.

Petrópolis, Budapeste. Milhares de quilômetros, dois hemisférios, épocas diversas. O prédio da rua Andrássy já era usado pelo Partido Nazista Húngaro desde 1937, mas só em 1944, quando Hitler ocupou o país, começaram as torturas em seus porões. Os comunistas tiveram mais tempo. Assim que os tanques soviéticos entraram em Budapeste, em 1945, a polícia secreta do novo regime se instalou ali.

Percorro o museu de cima a baixo. Quando volto ao nível da rua, percebo que ainda falta um andar a ser visitado: o subsolo. Lá ficam as celas. Os porões da tortura.

Quando a Casa do Terror foi inaugurada, em 2002, o prédio da rua Andrássy já tinha deixado de abrigar a polícia política fazia quase 40 anos. Mas a reconstrução foi perfeita. A umidade transpira das paredes, o cheiro é peculiar.

Percorro os corredores com o coração fechado. Há sombras por toda parte. Nas celas encardidas, nos cubículos forrados com sacos de algodão -para que o som seja abafado. Tudo é real. Na TerrorHáza, há muita informação, mas há também sentimento, e o visitante sai de lá comprometido com o que viu. Não há como ficar imune.

Cruzo um gradil. O pensamento em Inês volta com força. Lembro do dia de sua libertação, em agosto de 1979. A multidão do outro lado do portão de ferro, os repórteres. Toda a família tinha entrado para sair com ela. Quando cruzamos o portão, muitos de nós chorávamos. Inês, não. Lá dentro, disse que não ia chorar, porque seria uma demonstração de fraqueza.

Dois anos depois, reunidas as provas, ela foi a público revelar a localização da casa de Petrópolis, divulgar a tortura, denunciar o médico que a mantivera viva para que os interrogatórios continuassem. As Forças Armadas soltaram nota dizendo que era revanchismo. Exército, Marinha e Aeronáutica de um lado e, do outro, uma mulher sozinha. Uma sobrevivente.

Volto à superfície, a visita acabou. Olho para o prédio cinza, para a marquise de imensas letras vazadas. Hoje, quando a discussão sobre a punição aos torturadores do regime militar volta à pauta no Brasil, eu me pergunto se não seríamos um país melhor se tivéssemos transformado a casa de tortura de Petrópolis em uma TerrorHáza.

Heloisa Seixas
Budapeste, novembro de 2011

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