Ilustração: Guayasamin.
É uma fria manhã de novembro e estou diante da TerrorHáza, a Casa do
Terror, em Budapeste. É um museu -no prédio funcionou a sede das polícias
políticas da Hungria, tanto no regime nazista quanto no comunista. Rua Andrássy,
60. Ao olhar a fachada, um nome surge em meu pensamento: Inês.
Inês, que
não é morta, mas que foi ao inferno e voltou para contar a história. Inês
Etienne Romeu, ex-guerrilheira da Var-Palmares, ex-companheira de luta armada de
Dilma Rousseff. Inês, que ficou presa durante quase nove anos e passou três
meses na casa de tortura, em Petrópolis, levada pelo delegado Sérgio Fleury. A
única, entre os prisioneiros, que saiu viva de lá.
É nela que penso. No
pátio interno, o chão é um espelho d'água e, sobre ele, há um tanque de guerra.
A única parede cega é forrada por rostos, em alto contraste. Homens e mulheres.
As vítimas do terror.
Conheci Inês Etienne Romeu em 1977, presa no Instituto
Penal Talavera Bruce, em Bangu, condenada à prisão perpétua. Na época, a
situação já tinha melhorado para os presos políticos, mas, sempre que eu a via,
nas visitas mensais ou quinzenais que lhe fazíamos (eu era casada com o irmão
dela, Paulo), não conseguia deixar de pensar no que Inês tinha
passado.
Inês foi presa em 1971, em São Paulo, e por três meses esteve
desaparecida. Foi dada como morta, e a família já procurava seu corpo quando ela
voltou, destroçada, pesando pouco mais de 30 quilos.
Seu reaparecimento
talvez tenha sido uma tentativa, por parte dos paramilitares, de forjar uma fuga
e assassiná-la, mas algo deu errado no plano: Inês foi presa, agora
oficialmente, e isso a salvou.
Só assim pôde revelar onde estivera naqueles
três meses, entre 5 de maio e 11 de agosto de 1971. A casa de tortura de
Petrópolis.
Petrópolis, Budapeste. Milhares de quilômetros, dois
hemisférios, épocas diversas. O prédio da rua Andrássy já era usado pelo Partido
Nazista Húngaro desde 1937, mas só em 1944, quando Hitler ocupou o país,
começaram as torturas em seus porões. Os comunistas tiveram mais tempo. Assim
que os tanques soviéticos entraram em Budapeste, em 1945, a polícia secreta do
novo regime se instalou ali.
Percorro o museu de cima a baixo. Quando
volto ao nível da rua, percebo que ainda falta um andar a ser visitado: o
subsolo. Lá ficam as celas. Os porões da tortura.
Quando a Casa do Terror
foi inaugurada, em 2002, o prédio da rua Andrássy já tinha deixado de abrigar a
polícia política fazia quase 40 anos. Mas a reconstrução foi perfeita. A umidade
transpira das paredes, o cheiro é peculiar.
Percorro os corredores com o
coração fechado. Há sombras por toda parte. Nas celas encardidas, nos cubículos
forrados com sacos de algodão -para que o som seja abafado. Tudo é real. Na
TerrorHáza, há muita informação, mas há também sentimento, e o visitante sai de
lá comprometido com o que viu. Não há como ficar imune.
Cruzo um gradil.
O pensamento em Inês volta com força. Lembro do dia de sua libertação, em agosto
de 1979. A multidão do outro lado do portão de ferro, os repórteres. Toda a
família tinha entrado para sair com ela. Quando cruzamos o portão, muitos de nós
chorávamos. Inês, não. Lá dentro, disse que não ia chorar, porque seria uma
demonstração de fraqueza.
Dois anos depois, reunidas as provas, ela foi a
público revelar a localização da casa de Petrópolis, divulgar a tortura,
denunciar o médico que a mantivera viva para que os interrogatórios
continuassem. As Forças Armadas soltaram nota dizendo que era revanchismo.
Exército, Marinha e Aeronáutica de um lado e, do outro, uma mulher sozinha. Uma
sobrevivente.
Volto à superfície, a visita acabou. Olho para o prédio
cinza, para a marquise de imensas letras vazadas. Hoje, quando a discussão sobre
a punição aos torturadores do regime militar volta à pauta no Brasil, eu me
pergunto se não seríamos um país melhor se tivéssemos transformado a casa de
tortura de Petrópolis em uma TerrorHáza.
Heloisa Seixas
Budapeste, novembro de 2011
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