Em 1974, li Um Cão Uivando Para a Lua, livro de estreia de Antônio Torres. Fiquei um tempão impactado. Afinal, não é todo dia que nos deparamos com uma crônica acossada, um romance sombrio, um livro desesperado. Muitos outros romances se seguiram, publicados no Brasil e no exterior.
Ocorre que o consagrado Torres acaba de ser preterido pela Academia Brasileira de Letras, que elegeu o jornalista Merval Pereira para a cadeira 31, ocupada anteriormente por Moacyr Scliar. Fazer o quê?
Fazer o quê?! Ora, satisfazer uma curiosidade: conhecer o processo de criação de Um Cão Uivando Para a Lua.
Eis o que disse o escritor Antônio Torres em palestra proferida no Instituto de Letras da UERJ, no primeiro semestre de 1999:
PROCESSO CRIATIVO, OU:
COMO UIVAR PARA A LUA NUMA NOITE SEM A MENOR POSSIBILIDADE DE ESTRELAS
Em princípio, criar e coçar é só começar. Mas como é que se faz para começar? Se tudo
depende da primeira frase, já temos uma para entrar neste tema que vem despertando muita
curiosidade, principalmente para os jovens que estão se iniciando no mundo das letras. Como
se o processo criativo fosse a caixinha de Pandora que cada escritor guarda dentro de si. Essa
busca ao tesouro começa com outra pergunta, curta e concreta, que pode gerar respostas
longas e subjetivas, pois, ao entender deste já velho escriba, não há arte mais abstrata do que
a escrita. A pergunta é: "Como nasce uma história?"
Um escritor norte-americano chamado Henry Miller, hoje em desuso mas que fez muito sentido
para a minha geração, definiu o processo criativo de uma forma um tanto quanto
megalômana: "Deus fez o mundo em 7 dias. Depois entrou nele. Este o segredo da criação".
Já o nosso Gláuber Rocha, um cineasta de vocação literária por excelência, e que tinha fama
de delirante, baixou ao terreiro dos deuses afro-baianos, ao falar da gênese de seus filmes, em
entrevista ao locutor que vos fala, quando do lançamento de Deus e o Diabo na Terra do Sol, em 1964.
Disse ele: "O negócio é fazer mandinga e esperar o santo descer. Aí então a gente é bem capaz de
fazer um take de 4 minutos, na mão, entre luz e sombra, entre
foco e fora do foco, balançando ou não. Será possível ir aos infernos de outra maneira?" Clarice
Lispector também confessou que às vezes ficava dias e dias, com os olhos numa folha em
branco, à espera de que o texto baixasse em seu teclado. Igual a qualquer um de nós, hoje,
diante da telinha de um computador, até que o milagre aconteça. Ou que uma voz salvadora
sopre em nossos ouvidos: "Fé em si mesmo e mãos dadas às teclas. Com sorte, você terá uma
frase, um parágrafo, quem sabe uma página inteira que valha a pena".
O escritor aqui levou trinta anos para começar. Foram trinta anos lendo um livro atrás do
outro, obsessivamente. Pedindo socorro a Machado de Assis, Guimarães Rosa, Graciliano
Ramos, Drummond, João Cabral e Fernando Pessoa, Jorge Luís Borges, Gabriel Garcia
Marques, James Joyce, William Faulkner e Scott Fitzgerald. Lendo até bula de remédio, para
ver se achava a receita. Trinta anos cantando "O teclado não me ama, o teclado não me quer.
O teclado não me chama, de Baudelaire". Trinta anos lendo rostos, ruas, becos, estradas,
cidades, paisagens. E escrevendo, escrevendo, escrevendo. Para a cesta do lixo. Cheguei aos
trinta com uma frase de Oduvaldo Viana Filho, o Vianinha, em meus ouvidos, como uma
condenação: "Eu conheço mais de duas mil palavras. Mas o que isto me adianta?" Até que
numa bela manhã ... Não, era uma noite escura, feíssima, sem a menor possibilidade de estrelas. E foi
em São Paulo, aquele país amigo ao sul do Brasil, onde um dia William Faulkner, depois de ter
bebido uma parte considerável de seu Prêmio Nobel, acordou numa ressaca homérica, abriu a cortina
do hotel, olhou a cidade, bateu na testa e disse: "Oh, my God, Chicago again?". Pois foi lá
mesmo, na locomotiva da nação, destino de todos os baianos, que o baiano aqui, numa noite
de nuvens negras, pesadas como aquela cidade, percebeu que tinha algo nas mãos, para começar, e
que desta vez, quem sabe, ia ser pra valer. Estava sozinho no meu quarto de um
hotel barato na Alameda Barão de Limeira. Estava só no Brasil. Estava só nas Américas. Numa
noite de breu sem luar. E ouvindo Miles Davis tocando sem parar uma terna canção
americana, chamada My funny Valentine. A canção do Dia dos Namorados. Só que Miles Davis
– todos os trompetes havidos e a haver – parecia transformá-la num grito de dor, seguido por
gemidos de angústia e desespero. Foi aí que me lembrei do velho Faulkner, outra vez: "É a
memória, e não a dor, que faz você se lembrar de ruas selvagens e ermas." E outra vez me
lembrei de Scott Fitzgerald: "Numa noite escura da alma são sempre três horas da manhã." E
continuei ouvindo Miles Davis tocar My funny Valentine, indo e voltando para a mesma faixa do
disco. Aquele trompete lancinante parecia interpretar os tormentos da minha geração: uma
parte dela ouvia Jimmy Hendrix e se entupia de LSD, até ir parar debaixo dos choques
elétricos nos manicômios. Outra parte gemia nos porões da ditadura. Uivando até a morte
para um luar inexistente. Pronto: Miles Davis havia acabado de soprar nos meus ouvidos o
título que eu buscava há 30 anos: "Um Cão Uivando para a Lua". Era só ir para o teclado e
começar a história. Para encurtá-la: começou com a idéia de um conto sobre um louco
batendo papo consigo mesmo. De repente o teclado andou. Agora, sim, Eu e ele parecíamos
nos compreender, nos aceitar reciprocamente. E já que estávamos – finalmente! – nos
tornando amigos íntimos, fui em frente. Oito meses depois eu tinha um romance nas mãos. E
foi como ter tirado uma espinha da minha garganta, depois dele vieram outros, um atrás do
outro. Mas nunca mais iria conseguir escrever um livro com tanta rapidez. É bom lembrar que
por trás dele havia toda uma vida, marcada pela obsessiva, incessante e tantas vezes
desesperadora busca de um texto. Eis aí, em rápidas pinceladas, o esboço do meu começo.
Que significou uma vitória sobre muitas mortes, porque eu vivia com um terrível sentimento
de morte a cada tentativa fracassada ao longo do percurso. E, no entanto, o fracasso faz parte
do aprendizado, É a pilha de realimentação do seu processo, o limão que você pode
transformar em limonada. (...)
depende da primeira frase, já temos uma para entrar neste tema que vem despertando muita
curiosidade, principalmente para os jovens que estão se iniciando no mundo das letras. Como
se o processo criativo fosse a caixinha de Pandora que cada escritor guarda dentro de si. Essa
busca ao tesouro começa com outra pergunta, curta e concreta, que pode gerar respostas
longas e subjetivas, pois, ao entender deste já velho escriba, não há arte mais abstrata do que
a escrita. A pergunta é: "Como nasce uma história?"
Um escritor norte-americano chamado Henry Miller, hoje em desuso mas que fez muito sentido
para a minha geração, definiu o processo criativo de uma forma um tanto quanto
megalômana: "Deus fez o mundo em 7 dias. Depois entrou nele. Este o segredo da criação".
Já o nosso Gláuber Rocha, um cineasta de vocação literária por excelência, e que tinha fama
de delirante, baixou ao terreiro dos deuses afro-baianos, ao falar da gênese de seus filmes, em
entrevista ao locutor que vos fala, quando do lançamento de Deus e o Diabo na Terra do Sol, em 1964.
Disse ele: "O negócio é fazer mandinga e esperar o santo descer. Aí então a gente é bem capaz de
fazer um take de 4 minutos, na mão, entre luz e sombra, entre
foco e fora do foco, balançando ou não. Será possível ir aos infernos de outra maneira?" Clarice
Lispector também confessou que às vezes ficava dias e dias, com os olhos numa folha em
branco, à espera de que o texto baixasse em seu teclado. Igual a qualquer um de nós, hoje,
diante da telinha de um computador, até que o milagre aconteça. Ou que uma voz salvadora
sopre em nossos ouvidos: "Fé em si mesmo e mãos dadas às teclas. Com sorte, você terá uma
frase, um parágrafo, quem sabe uma página inteira que valha a pena".
O escritor aqui levou trinta anos para começar. Foram trinta anos lendo um livro atrás do
outro, obsessivamente. Pedindo socorro a Machado de Assis, Guimarães Rosa, Graciliano
Ramos, Drummond, João Cabral e Fernando Pessoa, Jorge Luís Borges, Gabriel Garcia
Marques, James Joyce, William Faulkner e Scott Fitzgerald. Lendo até bula de remédio, para
ver se achava a receita. Trinta anos cantando "O teclado não me ama, o teclado não me quer.
O teclado não me chama, de Baudelaire". Trinta anos lendo rostos, ruas, becos, estradas,
cidades, paisagens. E escrevendo, escrevendo, escrevendo. Para a cesta do lixo. Cheguei aos
trinta com uma frase de Oduvaldo Viana Filho, o Vianinha, em meus ouvidos, como uma
condenação: "Eu conheço mais de duas mil palavras. Mas o que isto me adianta?" Até que
numa bela manhã ... Não, era uma noite escura, feíssima, sem a menor possibilidade de estrelas. E foi
em São Paulo, aquele país amigo ao sul do Brasil, onde um dia William Faulkner, depois de ter
bebido uma parte considerável de seu Prêmio Nobel, acordou numa ressaca homérica, abriu a cortina
do hotel, olhou a cidade, bateu na testa e disse: "Oh, my God, Chicago again?". Pois foi lá
mesmo, na locomotiva da nação, destino de todos os baianos, que o baiano aqui, numa noite
de nuvens negras, pesadas como aquela cidade, percebeu que tinha algo nas mãos, para começar, e
que desta vez, quem sabe, ia ser pra valer. Estava sozinho no meu quarto de um
hotel barato na Alameda Barão de Limeira. Estava só no Brasil. Estava só nas Américas. Numa
noite de breu sem luar. E ouvindo Miles Davis tocando sem parar uma terna canção
americana, chamada My funny Valentine. A canção do Dia dos Namorados. Só que Miles Davis
– todos os trompetes havidos e a haver – parecia transformá-la num grito de dor, seguido por
gemidos de angústia e desespero. Foi aí que me lembrei do velho Faulkner, outra vez: "É a
memória, e não a dor, que faz você se lembrar de ruas selvagens e ermas." E outra vez me
lembrei de Scott Fitzgerald: "Numa noite escura da alma são sempre três horas da manhã." E
continuei ouvindo Miles Davis tocar My funny Valentine, indo e voltando para a mesma faixa do
disco. Aquele trompete lancinante parecia interpretar os tormentos da minha geração: uma
parte dela ouvia Jimmy Hendrix e se entupia de LSD, até ir parar debaixo dos choques
elétricos nos manicômios. Outra parte gemia nos porões da ditadura. Uivando até a morte
para um luar inexistente. Pronto: Miles Davis havia acabado de soprar nos meus ouvidos o
título que eu buscava há 30 anos: "Um Cão Uivando para a Lua". Era só ir para o teclado e
começar a história. Para encurtá-la: começou com a idéia de um conto sobre um louco
batendo papo consigo mesmo. De repente o teclado andou. Agora, sim, Eu e ele parecíamos
nos compreender, nos aceitar reciprocamente. E já que estávamos – finalmente! – nos
tornando amigos íntimos, fui em frente. Oito meses depois eu tinha um romance nas mãos. E
foi como ter tirado uma espinha da minha garganta, depois dele vieram outros, um atrás do
outro. Mas nunca mais iria conseguir escrever um livro com tanta rapidez. É bom lembrar que
por trás dele havia toda uma vida, marcada pela obsessiva, incessante e tantas vezes
desesperadora busca de um texto. Eis aí, em rápidas pinceladas, o esboço do meu começo.
Que significou uma vitória sobre muitas mortes, porque eu vivia com um terrível sentimento
de morte a cada tentativa fracassada ao longo do percurso. E, no entanto, o fracasso faz parte
do aprendizado, É a pilha de realimentação do seu processo, o limão que você pode
transformar em limonada. (...)
Dodô
ResponderExcluirAntonio Torres sim é escritor. Merval Pereira não é ninguém na literatura, muito menos no jornalismo. Porta voz da elite brasileira, não tenho palavras para dizer. Mas estas mediocridades passam, um escritor mesmo continua.
abraço
joão
Pois é, amigo, o poeta William Melo Soares, aqui da terrinha, me falou acerca de um bate papo com Antonio Torres, sobre assuntos triviais, há coisa de 2 anos. Ficou cativado pela simplicidade do cara. Assim é Torres, o baiano do Junco: postura simples, texto soberbo.
ResponderExcluirGrande abraço.
Dodô
ResponderExcluirMuito bonita sua homenagem.Eu li vários livros dele(que está fora de moda hoje, não sei porque), e adorei. É um escritor compromissado com seu tempo,e esta midia que está aí não quer isto.Quer um Ferreira Gullar, que agora está subserviente, e sai em tudo quanto é capa de revista.Tristes tempos.
ab
joão antonio
Olá Dodó,
ResponderExcluirEu adoro ler sobre a experiência dos autores quanto a inspiração, o ato de escrever.
Antônio Torres descreveu com tamanha sinceridade seu sofrimento de colocar no papel suas ideias que me fascinou bem como me inspirou.
Obrigada por compartilhar tantas maravilhas.
Beijos da amiga
Marília
Cara amiga,
ResponderExcluirMuito bonitas as suas palavras sobre a sinceridade de Antonio Torres. Ele com certeza iria gostar de ler esse seu comentário.
Gracias, e um grande abraço.