quinta-feira, 22 de outubro de 2009

SARAMAGO E O SAMARITANO


Recebi de uma amiga um texto do teólogo espanhol Juan José Tamayo sobre o notório ateísmo de José Saramago. O artigo foi publicado na edição do dia 17 do jornal El País.

Há muito Saramago propala seu ateísmo. Está lá, fustigador, sempre martelando. Sintomático? Chegou até a 'ver' estampada, num jornal exposto numa banca em certa praça espanhola, a manchete 'O Evangelho Segundo Saramago', que o teria motivado a escrever 'O Evangelho Segundo Jesus Cristo'. Freud pode não explicar; o Cosmo, quem sabe?

Eis o texto:

Pilar del Río, Sofía Gandarias, José Saramago e eu caminhávamos, em uma manhã de janeiro de 2006, pelas ruas de Sevilha, em direção ao auditório da Universidade Hispalense para participar de um simpósio sobre Diálogo de civilizações e modernidade. Às nove da manhã, enquanto atravessávamos a praça da Giralda, os sinos começaram a repicar enlouquecidamente. "Os sinos tocam porque um teólogo está passando", disse Saramago, com seu habitual senso de humor. "Não", eu respondi com o mesmo tom. "Os sinos tocam porque um ateu está a ponto de se converter". "Isso nunca", ele me respondeu. "Ateu fui durante toda a minha vida e ateu morrerei".Imediatamente, me lembrei de uma poética definição de Deus que lhe recitei sem vacilar: "Deus é o silêncio do universo, e o ser humano, o grito que dá sentido a esse silêncio". "Essa definição é minha", reagiu em seguida o prêmio Nobel. "Efetivamente, foi por isso que a citei", respondi-lhe. "E essa definição está mais perto de um teólogo místico do que de um ateu". Trata-se, a meu ver, de uma das mais belas definições de Deus, que mereceria aparecer entre as 24 - com ela, 25 - do "Livro dos vinte e quatro filósofos" (Siruela, 2000).

A obra literária de Saramago é uma permanente luta titânica contra Deus. Como foi a do bíblico, que amaldiçoa o dia em que nasceu, sente nojo de sua vida e ousa perguntar a Deus, em tom desafiador, por que lhe ataca tão violentamente, lhe oprime de maneira tão desumana e lhe destrói sem piedade. Ou como o patriarca Jacó, que passa uma noite inteira lutando de braço quebrado contra Deus e termina com o nervo ciático ferido.

Não é o caso de Saramago, que nunca se deu por vencido e saiu sempre incólume do combate. Aos seus 87 anos, ele continua se perguntando e perguntando aos teólogos e crentes que diabo de Deus é esse que, para enaltecer Abel, tem que desprezar Caim.Familiarizado com a Bíblia, a judaica e a cristã, ele recria com humor, um humor iconoclasta do divino e do humano, algumas de suas figuras mais emblemáticas. Fez o mesmo 20 anos atrás no "Evangelho segundo Jesus Cristo". Ele volta a fazer isso agora na novela "Caim", em que recria literariamente o mito bíblico. A Bíblia apresenta Caim como o assassino de seu irmão Abel, empurrado pela inveja, e Deus como "valentão". Saramago inverte os papéis do bom e do mau, do assassino e do juiz. Responsabiliza deus (sempre com minúscula) pela morte de Abel e o acusa de ser rancoroso, arbitrário e enlouquecedor das pessoas. Caim mata seu irmão não arbitrariamente, mas em legítima defesa, porque deus havia lhe preterido em seu favor. E o mata porque não pode eliminar deus.Compartilhe-se ou não dessa leitura da Bíblia judaica, acredito que se deve estar de acordo com Saramago que "a história dos homens é a história de seus desencontros com deus: nem ele nos entende, nem nós o entendemos".

Excelente lição de contra-teologia!

Qualquer que fosse a responsabilidade de Caim na morte de seu irmão, fica de pé a pergunta: "onde está teu irmão?". E a resposta não pode ser um evasivo "não sei. Acaso sou eu o guardião de meu irmão?", mas, seguindo com a Bíblia, a parábola evangélica do bom samaritano.

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