terça-feira, 5 de dezembro de 2017

DE COMO PHILIP MARLOWE VOLTOU À AÇÃO


O país dos canalhas - Capítulo 1 - Visita do alto clero

Por Sebastião Nunes

Eu batia o cachimbo na lixeira para limpá-lo e tentava acalmar meu estômago irritado quando o telefone tocou. Eram dez da manhã e eu acabara de chegar.

– Pois não – atendi com voz de sono. Tinha dormido pouco, me equilibrando como um barco bêbado entre uma loura falsa e uma garrafa de uísque legítimo.

– Philip Marlowe, o detetive particular de Los Angeles?
– Sim, eu mesmo – respondi. – Infelizmente Raymond Chandler não encontrou nome melhor quando me criou como um detetive particular fodão.
– Meu nome é Ednardo Cunha e gostaria de consultá-lo – disse a voz, ignorando minha tentativa de humor, se é que ele entendia alguma coisa de literatura.
Refleti. O único Ednardo Cunha que me ocorria era um ex-deputado, preso por trambiques variados e condenado a uma pena que – eu não tinha certeza – variava, em anos, de um a dois cachos de banana nanica madura. E, pelo que eu sabia, devia estar mais enjaulado do que sagui em zoológico municipal. A menos que...
– Estarei aí dentro de meia hora – disse a voz do suposto Cunha, interrompendo meus devaneios. – E levarei alguns amigos.

CUNHA NA REDE
Desci e engoli um hambúrguer frio com suco de laranja enlatado na lanchonete do térreo. Bom para evitar diarreia. Empurrei a gororoba com duas xícaras de café sem açúcar e voltei. Enchi o cachimbo. Acendi. Tinha gosto de noite mal dormida.
Quando bateram na porta mandei entrar.
Entraram.
O primeiro era de fato Ednardo Cunha, se não mentiam suas fotos dos bons tempos. Atrás vinham Eduardo Praes, Joseph Serrote e Amnércio Naves. Não entendi a presença de Naves e Serrote que, imagino, ainda não estavam presos. Mandei sentar.
Sentaram.
– Antes de mais nada, gostaria de saber seus honorários – disse Cunha, com um sorriso de Mona Lisa e afrouxando a gravata italiana de listras vermelhas.
– Em 1940 eu cobrava 25 dólares por dia mais despesas. Convertendo para os dias de hoje e ao câmbio atual, cobro R$ 1.000,00 por dia, mais despesas. Para clientes e casos especiais, como trabalhar para brasileiros, no Brasil ou fora dele, os honorários sobem para R$ 10.000,00 por dia. Claro que sempre cobro um adiantamento e, no caso de políticos, o adiantamento significa 100% dos honorários. Mais despesas.
 – Não é muito – disse Serrote olhando para Amnércio, que roía as unhas.
– Também acho que não – concordou Praes. – São honorários razoáveis para um detetive particular com a fama do senhor Marlowe.
– De acordo – disse Cunha. – Podemos conversar aqui mesmo? Você não tem microfones, filmadoras ou gravadores ocultos? Sabe como é: gato escaldado...
– Nunca gravo nada na primeira entrevista – acalmei os clientes. – Além disso, o escritório é mais à prova de som do que barriga de sapo morto.

VÍSCERAS EXPOSTAS
– Perfeito. Pretendemos assaltar a Casa da Moeda dentro de 10 dias – informou Cunha de supetão, como se estivesse sugerindo um piquenique.
– Entendi – disse eu, sem me espantar. Tratando-se daquela quadrilha nada seria espantoso. – E por que pretendem assaltá-la?
Os quatro se entreolharam. Imaginei se estariam pensando que eu não passava de um idiota completo. Talvez tivessem razão.
– Para levar o dinheiro, é claro.
– Por que não escolhem uma grande agência bancária? Costumam ter mais grana do que a Casa da Moeda. E a vigilância é mais frouxa do que discurso de deputado.
– Preferimos dinheiro novo, estalando de novo. Temos um pouco o espírito de seu conterrâneo, o Tio Patinhas. Além disso, e como ele, temos paixão por cofres-fortes. E dinheiro novo já vem embalado, é mais fácil de transportar e tem melhor aceitação nas lavanderias com as quais trabalhamos no Exterior.
Reacendi o cachimbo e fiquei olhando para o quarteto.
Até onde eu sabia, Cunha era um bandido graúdo, especializado em receber e pagar propinas. Desde que galinha tinha dente. Amnércio, Serrote e Praes, ao contrário, especializaram-se em depenar governos estaduais. O que não se podia negar era a competência do quarteto: tinham mais anos de trambicagem do que Messi de gols no Barcelona. E quase o mesmo talento. Em suas especialidades, é lógico.
– E qual será o meu trabalho, se chegarmos a um acordo?

CONFIAR É PRECISO
– Em primeiro lugar, preciso esclarecer alguns detalhes – disse Cunha, sempre à frente dos comparsas. – O principal ponto a seu favor é ser estrangeiro. No Brasil não temos detetives particulares e, caso tivéssemos, eles não seriam confiáveis.
– São todos uns ladrões – disse Serrote se intrometendo.
– Como assim? – fingi espanto. – Se não existem, não podem ser ladrões.
– Ele não se refere a detetives particulares – interveio Praes. – Está dizendo que no Brasil ninguém é confiável.
A julgar por eles, pensei, estava coberto de razão. Amnércio continuava calado, e então entendi o sentido da expressão “mineiro trabalha em silêncio”. De fato.
– E o que mais? – perguntei.
Em segundo lugar, precisamos de um álibi indestrutível e, pelo que conhecemos de seu trabalho, é perfeitamente capaz de nos conseguir um.
– Um ou quatro? – busquei me certificar.
– Um para os quatro – afirmou Cunha. – Ou um para cada um de nós.
– Ok – concordei. – Mas preciso de mais informações.
Os quatro se entreolharam. Pareciam ter tudo esmiuçado. O que eu não entendia era ter sido procurado quase na véspera do assalto. Precaução?
(Continua na próxima semana)  -  [Fonte: Aqui].

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(Sebastião Nunes, natural de Bocaiuva, MG, escritor, editor, artista gráfico e poeta, é titular de um blog no Portal Luis Nassif OnLine).

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